Nisto lavo as minhas mãos (escritos entre 2005 e 2015)

é importante (2008)

Por vezes elas caem com dignidade
Se elas caem com dignidade…

Escorregam devagarinho
E não desalinham

A respiração
Isso é importante

Mesmo que surpreendam
Ao saltar da maçã de um rosto

Porque caem num braço
Com tanta delicadeza
Deslizam

Porque às vezes
Saem a galope
E deixam para trás
Golpes profundos

Esgrimem duas faces
Desfiguram
E ardem
Feridas

E desalinham

A ordem
Isso é importante

Como é importante
Quando ficam lá no fundo
No labirinto silencioso
Do ócio e do sono
Ou se prendem e secam
Um olhar sem sono
E sem rumo

tida (2008)

entre a vida
e a morte

temos a tida.
que é uma espécie de sorte,
onde se cai,
de onde se brota,
de onde se sai
ou se fica.

e aqui a temos sem ser
espampanante,
espectacular,
nem estrondosa.

é uma simples tida,
temida ou destemida,
mas medida.

carta das coisas claras (2007)

caiu-me o céu sobre a cabeça

Areia molhada, areia seca; pele de areia fina e pele de estrelas da alma negra que as sustenta; pedacinhos do arco-íris; pepitas de ouro e fanecas em bandejas de prata; cântaros mais cântaros de água esverdeada, sobrando apenas o som e a cadência das palavras em voo planado sobre o oceano da redundância das adivinhas inversas de adversidades que movem, movem sim, movem moinhos parados mastigando fantasmas. Aqui não há peixes mas círculos redondos, relógios e feras e narizes rotundos; além de uma mulher branca que se move pela pressão escura das águas demasiado profundas. Por que se compõe ela nas profundezas? Porque se subtrai ela às sombras de um constante rodeio dela dos seus farrapos, se são só penas de água que a circundam? Água parda pois, mas ela é quem nela se afunde. Vamos chamar-lhe Aurora, porque ela vem da negrura; e vamos dizer que o seu mundo se funde ao de outra, à qual chamaremos Dona Meta. Em homenagem da sua forma triangular e das suas contas de areia, que lhe servem de propósito na equivalência de reversos na nova moeda da inversão verídica do negócio da mentira, homenageando poetas que fizeram assim (assim, assim como?): como se repetem as coisas e as almas! Como se acrescentam as pessoas! E como já não se ajuntam os povos, em cada um arrimam-se exércitos inimigos em batalhas de outro mundo (outro mundo?). Mas que dizes tu, que disparate?! A Dona Meta acena o seu chapelinho, já reparaste? Sim, um chapelinho ao contrário, e depois? E depois olha, há que folgar um bocadinho, que tremura no olho direito é cansaço.

Aurora

O meu sonho começa com um robusto cão preto de pelo luzente que ladrou e agora me espreita por uma janela quadrada, bem grande para a porta da entrada, quer dizer, vê-se muito bem para dentro de minha casa. Acaba com uma voz raspada, que faz atrito do ar ao ser falada tão baixo que as palavras soam muito mais altas do que seria de esperar de qualquer coisa dita ao ouvido: chegou a Aurora. O cão espera sonolento deita-se na minha cama. Há um fantasma solto na casa que se move um assento para o centro da sala de pintar, e o cão veio para me levar, para me acompanhar no meu afago da sua pelagem alinhada e branda. Há que calçar os sapatos, por duas vezes o faço, por duas vezes julguei-me a sonhar. Deixei-me cair de novo entre os lençóis; é um sonho de certeza, como poderia de um velho caderno soltar-se um fantasma? E nisto estendo o braço e toco com a ponta dos dedos este belo cão negro que ao que parece não me deixa, ah afinal não, mais uma vez os sapatos, toca a zarpar e vem um grande cansaço e a voz que me faz acordar. Chegou a Aurora. Toca a despertar. Mas será que sou eu alienada no meu grande plano furado, descarada em meus amores, desconfiada e agressiva e absolutamente insusceptível de me submeter a preceitos morais? Bem, se isto for verdade e sou eu, então é porque eu sou um imenso baralho de cartas recheado de corações e espadas de pau, pode ser, mas não de ouro (será que são estes os tais recrutas apurados para um novo exército de loucos?). Quem sabe, por cá andam também damas perdidas, e um rei, e é possível que se abrigue um belo ás na manga e que este baralho saia um dia muito bem disfarçado de Joker. Nunca se sabe. Do que está para vir não se sabe nunca. Mas poder-se-á fugir ao que vem e chega do passado?

Julieta

Voltando àquela onda gigante. Hoje passei o dia a sentir-me na praia, não me detive por baixo do sol mas tive-me acima de uma pocilga assombrada. E no entanto senti-me como se estivesse na praia. O baixo ronronar dos motores de domingo pareceu-me o som do oceano ao longe e eu escondida na sombra de uma duna sentia que se preparava alguma. Na minha característica impaciência resolvi saltitar de placa em placa tectónica, a Natureza que não se ofenda de eu ser assim catastrófica. Aqui não está o Verão, embora seja possível que ao longe esteja e que na verdade esta onda que avança estática pelo horizonte e me impede de ver a liberdade que ele comporta, essa tal sensação infinita, pode ser, pode ser que seja uma miragem.

Vanda

O homem mais alto do mundo disse que as pessoas não são todas iguais, e que não há duas pessoas iguais, há pessoas altas e pessoas baixas mas o mundo foi construído para pessoas de estatura mediana. E, posto isto, acaba-se a carta à mão na ronda do fado à vinda da Rodésia a subir a calçada da serra. Numa selva de flora corrigida por um caminho desalinhado acerta-se o passo ao desagrado. Deve ser na Rodésia esta floresta de flores secas arranjadas e pintadas de verde e rosa. As capicuas esvoaçantes recitam números e versos indecifráveis, peixinhos no lago levantam os braços: E então?! Não era essa a ideia? Um palíndromo arrasta-se por sombras alisando as plantinhas rasteiras conforme ele penteia a serra enquanto vai a Vanda desenhada sobe a calçada de marfim arroxeada. Ela segue atrás na ronda do fado que faz em sombra luz da via amarelada, olha o detrás; vê-se alva reflectida na água. Há andorinhas que voam pelo dia fora havia eu, Aurora, de estar aqui, mas desisto sem chegar a saber o que significo. Querido pai, muito me ensinas mas eu não percebo, não compreendo e no entanto tenho dores que só podem ser dores de crescimento. Meu pai, tu que és a minha vida que não consente uma única resposta não me respondes. Eu tenho esta pergunta. Contenho esta pergunta. Falo sempre de boca cheia. Minha mãe, a morte, disse-me um dia, vou pesar em ti toda a tua vida.

rio do inexprimível (2007)

Esta é a história da minha tristeza.
História que é da minha alegria.
E que conta de um deus e de uma deusa
que duravam num planeta diverso,
que à nossa terra era idêntico.
E onde cada um tinha
o seu monte e o seu nome.

Entre os montes, no vale, corria um rio imenso,
ao qual nenhum mortal ia beber
ou banhar-se, por prazer,
tal era o medo do desconhecido.

O Rio do Inexprimível, chamava-se, e todos falavam dele.
Mas apenas para amedrontar adultos e criancinhas,
porque havia quem se fartasse de ouvir e lá fosse,
e esses nunca mais ninguém via;
e quem se aproximava a medo voltava apavorado,
a tremelear sobre sons desumanos que, com certeza,
anunciavam a vinda de um exército inimigo.

Esses, enlouquecidos, pregavam pela rua,
tenham temor a esse exército poderoso
que vem para nos destruir a todos!,
e falavam também de umas figuras tão sedutoras,
mas que, ai de nós, cegavam quem ousasse
olhá-las prolongadamente,
e não é que os olhos não vissem!, diziam eles de voz incerta.

Rio do Inexprimível, pensava o deus, aborrecido, que ironia!
E lá ia ele brincar um bocadinho, com a sua colecção de coisas ocas,
que juntava desde pequenino
porque gostava dos sons que delas saíam.

Durante horas a fio, produzia
os afamados sons inumanos, que a deusa ouvia ao fundo,
enquanto fazia as tais figuras sedutoras
e pensava: de onde virá tão rara melodia?

O que a deusa ouvia,
nem era o que o deus tocava.
Sabemos como os sons passeiam
e como se reflectem em tudo o que encontram.
E nisto também
este mundo ao nosso
era idêntico.

Coisa que, para ele, era indispensável,
isso de ter a sua melodia de volta, e ela
já não ser a sua,
por estar de tal forma fundida
com tudo aquilo que havia.
Para ela, do outro lado,
todos estes sons se compunham
numa irrecusável e aterradora suspeita
de que havia alguma coisa bela,
outra coisa neste mundo,
para além dela só
e deste monte.

É que cada um deles não sabia
da existência do outro morro.
Tanto por questões de perspectiva,
porque também este era
um planeta arredondado e pequeno;
como por terem um rio,
que parecia um oceano,
a separá-los um do outro.

na ausência dela (2005)

hoje aconteceu outra vez;                       
                                              mesmo antes de sentir os arrepios já estava a pensar nela; desta vez foi com o calor no pescoço e nos ombros que ela transpirou na minha memória; depois foi como de costume; quando o meu rosto já não aguenta mais o rubor, movo-me e cumpro; desagrada-me se acontece em público ou noutras situações que tornem o processo moroso e complicado e em que o fim não possa ser concretizado de imediato; hoje não tropecei em nenhum obstáculo; segui o impulso dos pulmões, a puxar todo o ar e tudo para dentro lá fui agarrada às paredes tonta da urgência que tinha dele; desdobrei-o sem cerimónia como se abre uma cadeira de campismo e sentei-me; enquanto flectia os joelhos tive de conter a saliva que me crescia na boca; além das saias, as minhas mãos apertavam o meu prazer por antecipação e imaginei que com elas espremia as minúsculas gotas que o salpicavam; sentia-o quente e escorregadio e senti os arrepios; pensei que costumava ser este o momento em que ela surgia, altiva, a caminhar com firmeza na minha direcção; os passos largos sobrepunham-se ritmados pelo movimento circular do braço com que ela fazia girar um daqueles porta-chaves engraçados; as chaves quase raspavam o chão e subiam transportadas pela velocidade e por uma espécie de mola de borracha; no topo batiam umas contra as outras e caíam desamparadas entre ecos e tentativas fracas de se agarrarem umas às outras para no outro extremo voltarem cada uma ao seu lugar com um gemido surdo e seco como se alguém lhes tivesse puxado as orelhas; a banda sonora desta cena lembrava-me sempre os filmes de terror e isso deve ser por ter tido um sonho há muito tempo em que andava pelo corredor de uma casa com paredes que rachavam e do escuro saíam braços que se esticavam e tentavam apalpar tudo e isto sempre ao som muito alto do ressoar das correntes a bater no chão; imaginei pés agrilhoados durante todo o caminho em frente em direcção à única porta a pensar pasmada que estava numa casa assombrada e que isso não era tão preocupante como pensar que a casa podia não ter uma casa de banho; toda a sensação irradiou e tudo aflorou a pele para deixar todo o espaço para ela; apertava-o dentro torcia-o e mexia-me por tremer ainda do arrepio e começar a estremecer da volúpia que ameaçava retirar-me os sentidos; então ameacei largá-lo e aprazo-me em vê-lo assim escorregadio e aflito; ali estava ela e eu pensei que estava ali por ela e que ela nem imaginava que era o seu nariz empinado e a forma como abria tantas vezes as mãos deixando-as na posição que se usa para apoiar o queixo e as rodava ligeiramente enquanto falava; via a sua boca mexer mas só percebi o desdém das rugas que ela fabricava a partir dos cantos exteriores dos olhos enquanto falava; sabia que era para ela e que se não o compusesse para ela isto tudo não passaria de um mero exercício de escatologia a correr eu o risco de confundir tudo e trocar os nomes às coisas; não despreguei os olhos dela durante o tempo que demorou a dizer cada palavra sem desistir do sorriso que lhe enfeitava os cantos da boca e olhava para ela interrogativa ao mesmo tempo que arqueava as costas para a frente para o sentir mais duro cá dentro; depois fixei-lhe os tornozelos que vertiam de dentro das calças de corte clássico mas um pouco curtas mas apertava-o a ele e dela já só via os sapatos correntes e a mão apoiada na bacia; soltei-me dele e larguei-o e apagou-se-lhe o rosto com a expressão apurada de quem foi amputado; ele olhou para mim enquanto afundava olhava para mim e acusava-me de o ter agarrado; de o ter feito passar para o lado de fora porque ele desequilibrou-se e eu é que o voltei a agarrar apenas para demorar a largá-lo justamente o tempo que ele precisou para começar a convencer-se de que eu não o iria deixar cair na água; ele sabia que tinha acabado de soar patético e que era dessa mesma forma que se apresentava ao afundar-se; entretanto ela pisava a água ao fundo presa ao seu reflexo que trocando as voltas ao mundo seria muito mais alto do que ela; eu entre tudo isto pensei que nem havia forma de falar com ela quando muito poderia falar dela o que acontecia era que de qualquer forma ela já não me interessava; preferi deleitar-me a sentir o meu vácuo na minha expressão nele da ausência dela na expressão dela deitar cá para fora tudo o que a ela se assemelha de tal modo que seja espelho dela; mas um que lhe mostre a sua imagem de si destruída nas ondulações à superfície e por isso é que tive de o expulsar para que pudesse insinuar-se diante dela e ameaçar tocar-lhe a saber que ela não o consegue tocar nem deve achar que se pode; ele também não lhe toca; mas na verdade importa-me muito mais agora que eu fique com todas as ressonâncias do vácuo da minha expressão nele por fim gravadas na memória e a partir da ausência dela

pelo peixe (2005)

é pelo peixe que falo nas gaivotas. É que se não fosse por ele nem me lembrava das cagadelas;                       
                                              costumo adormecer a ouvi-las; no outro dia a meio da tarde no jardim ouvi um grito que parecia vir de um homem feito seguido de três ou quatro foguetes e depois das gaivotas; elas coitadas tentavam fazer-me crer que o que eu ouvia não era o eco do susto delas mas o homem que gemia; e julgavam mesmo que o mostravam ao esvoaçarem à mostra num desapropriado alvoroço que tentava cobrir o céu aberto quando não era nada disso que eu via; bem receava vê-las a elas e em pleno sobressalto sem sequer saberem elas por que raio para ali esvoaçavam; se nem sabiam onde estavam; em alturas como esta costumo subir os olhos e pousá-los no topo da palmeira que se ergue no jardim entre todas as outras torres; falos erigidos dizem em nome do ímpeto de outro e que na verdade são pouco e apenas na sua fundação muito diferentes da minha adoração pela desmedida palmeira; de barriga para o ar e mãos atrás da cabeça de igual forma as imaginava sentadas erectas a jogar às cartas de madrugada; como se pavoneiam elas pensava eu e com aquilo que supõem ser gritinhos e gemidos e até mesmo ligeiros suspiros eróticos e que na verdade é aflição é desespero é fome é vontade de cagar; também não sabem que a verdade é da natureza; como não sabem como se fode nem como se grita bem alto e muito menos como o erotismo não passa de uma tentativa hipócrita de pornografia quando na verdade só a condena a existir na mediocridade; ainda por cima fazem batota e desatam a gritar histéricas a acusar-se umas às outras enquanto eu de barriga para o ar e a olhar para o tecto aposto que quem provocou esta algazarra toda foi a gaivota batoteira e insegura que tentou distrair as outras perguntando-lhes o que era aquilo ali ao fundo; do topo da palmeira que unia o céu à terra e de fisga na mão e rodeada das minhas pedras eu amaldiçoei o homem: um dedo por cada refluxo de latidos inconvenientes e de guinchos alienados e por fim a cabeça por todo aquele despropósito; se é por culpa delas que por aí se tem exibido o peixe podre é por culpa dele que eu sou obrigada a vê-las; é que até podia olhar para elas porque as vejo da minha janela se não tivesse de estar sempre a limpar os vidros eu não vou perder tempo com isso; só se fosse com a janela aberta e com a fisga em punho mas parece que nem isto é claro para elas e deve ser por isso que uma ou outra me chama à janela e se da primeira vez fiquei surpreendida e achei aquilo sinistro agora gozo-as ou não fossem elas depositar-se à minha frente a fazerem-se ouvir e pior que isso; conferindo-se armadas com débeis bicadas numa miragem qualquer que deste lado é invisível e eu tenho mesmo que rir porque elas são muito mais divertidas quando debicam a própria merda.